Ficcionistas de Campinas
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Com seu brilho habitual, nosso amigo Sérgio Castanho, há algumas semanas, neste mesmo espaço cultural do Caderno C, colocado em merecido e inadiável realce a obra ficcional do escritor campineiro Roberto Goto.
O mesmo Goto é ainda autor de importantes ensaios literários, entre os quais o recente Eustáquio & Joaquim (Deigo Editora, 2020), em que celebra a trajetória, obra e memória de duas figuras icônicas da paisagem cultural da cidade, ambos mineiros, ambos campineiros por opção, Eustáquio Gomes (1952-2014) e Joaquim Brasil Fontes (1939-2019). Em relação ao segundo trata, em especial, de sua obra derradeira, Nigredo, estudos de morte e dulia; quanto ao primeiro, relembra, sobretudo, seu romance A febre amorosa, ambientado em Campinas, ao tempo da epidemia de febre amarela. A obra de Eustáquio é, a propósito, indelevelmente marcada pela presença da cidade que ele escolheu para viver e amar. Já destacamos, também aqui neste espaço, que foi ele, fundamentalmente, um escritor de Campinas, como tal a ser reverenciado, não só pelas entidades literárias locais, mas também pelas autoridades do Município.
Há outras obras de escritores nascidos ou radicados em Campinas a ser produzidos; de uma delas, por mais recente, aqui se trata, de autoria de nossa companheira da Academia Campinense de Letras (ACL), Cecília Prada, Nós, que nem ao menos somos deuses (Editora Pontes, 2020, prefácio de Ana Maria Melo Negrão) .
Residente há vários anos em Campinas, a autora colaciona nesse livro 35 narrativas escritas ao longo de seus múltiplos itinerários; e, assim, pelas páginas desfilam episódios que transitam desde ambientes agrários, interioranos e arcaicos, possíveis reminiscências da infância (Ponto do nunca-mais, A mãe, o superlativo A casa – uma travessia) e outros que têm como pano de fundo os grandes centros urbanos da contemporaneidade (La Pietà, O desafio, Como quem olha de uma janela). Algumas vezes esses territórios se confundem e se mesclam, como no conto Silvia, em que o corpo da mulher precisa se converter ou se transfundir, reminiscente, em matéria vegetal, nas fendas rudes e musgosas de bananeiras e jaqueiras (sílvia, selva, seiva) .
Marca distintiva em todos, estórias e protagonistas desprovidos de porvir ou expectativas, irmanados pelas mesmas agruras da condição feminina ou, mais amplamente, pela miséria existencial, a que não resta sequer o consolo de uma divina misericórdia.
Por trás das narrativas (engendradas pela imaginação ou inspiradas em fatos vividos) e de suas personagens (inventadas ou reformuladas a partir de figurinos reais, inclusive ela própria), percebe-se a presença de uma escritora corajosamente libertária, avessa às convenções sociais, morais , religiosas e mesmo literárias, e, por isso, como enfrentando, negando e transgredindo.
Emblemático dessa visão do mundo é o conto Marta-Maria aos pés do Senhor, releitura dos episódios dos Evangelhos sobre as duas irmãs que acolhem Cristo em sua residência, Marta se dedicando ininterruptamente às tarefas domésticas e Maria concentrando-se, não sem certa indolência, a agradar o Mestre, deitando-se a seus pés, adulando-o e lavando seus cabelos com unguentos. A escritora, no entanto, reinterpreta o trecho bíblico sob uma perspectiva irônica e mesmo corrosiva, e por isso mesmo a humanizando, assinalando os ciúmes de Marta e a exortação ao Mestre para que admoeste a indolência da irmã. Através da narrativa ou mito bíblico se desconstrói, ao mesmo tempo em que uma gravura, presa à parede e reproduzindo a cena, gradualmente se descola e se destece.
O conto me reconduziu, por uma das vias transversas da associação de textos, a um dos sermões de Mestre Eckhart, em que se aborda o mesmo episódio, mas com o empenho desse místico alemão do período medieval (c. 1260 – c. 1327) em emprestar às tarefas domésticas de Marta um significado transcendente, uma forma própria e peculiar de se aproximar-se de Deus, de O conhecer e louvar (Sermões Alemães, Ed. Univ. São Francisco / Ed. Vozes, 2008, trad. Enio Paulo Giachini).
Diversa, no entanto, é a ótica de Cecília Prada, quando, ao fim, termina por “desfabular” o relato das Escrituras, convertendo o Mestre em estatua e, como se tudo não passa de sonho ou imaginação, transportando Marta-Maria, reunidas numa só personagem, para um apartamento em Ipanema.
A leitura de livros tem sido um antídoto e um bálsamo contra as agruras do isolamento social. Leia livros. Leia livros de autores de Campinas.
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Fonte: Post Original